sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O dia em que perdi a virgindade




 Todo mundo dá voltas ao longo da vida e um certo dia, ainda jovem, acabei presidente de uma escola de samba. Como não tínhamos sede, eu que adorava os bares da zona sul, a mais chique de São Paulo, e já era boêmio sete noites por semana (e continuei até a Lei Seca me quebrar), achei que já tinha experiência e decidi montar um bar.  Escolhi um prédio do Brás, que tinha uma ampla zona nos fundos. Na minha imaginação, eu gastaria apenas na montagem e depois o bar pagaria o aluguel e até sobraria. Foi minha primeira trombada no setor, 1976. E também foi quando comecei a conhecer esse tipo que sempre nos acompanha, grudado na pele, os fiscais.
O primeiro deles apareceu logo nos primeiros dias, pediu os documentos.... O cara que eu tinha posto para tomar conta do bar me chamou apavorado. Lá vou eu, advogado novo, metido.
Pois não, sou o proprietário, disse para o cara de fuinha que esperar com uma bolsa bem surrada logo na entrada do Moçada do Brás.
Muito bem, disse ele. O dr ainda não colaborou, sem colaboração não vou fechar o bar.
Que colaboração? O sr é de alguma igreja?
Não, sou fiscal da prefeitura..
Não me amedrontei, interrompi o sujeito:
Estou providenciando todos os documentos; isto é sede de uma escola de samba, uma manifestação cultural do povo brasileiro, presta um serviço social a coletividade...
Moço, sem documentos o bar não vai ficar aberto.
Vou tirar todo documento que for necessário para não ter que ser cúmplice desse tipo de conduta.
O dr não conseguirá. E não posso fazer exceção, aqui todo mundo pagou. Se o dr não pagar fica mal para nós, da prefeitura. Vão saber, vão achar que é proteção, vai ser uma merda...O dr tem que ter bom sendo; só para citar um exemplo, uma máquina a vapor para lavar pratos, lei número 0000.
O cara tentou mostrar a lei, mas nem esperei.
Ok disse eu, amanhã o senhor passa aqui e a máquina estará funcionando.
Impossível dr, a máquina é importada e a importação tá proibida. Não tem máquina desse tipo  no país (era 1976).
Nessa altura o Sergião , puxador de samba, um crioulo de dois metros de altura, que escutava a conversa, me chamou de lado.
Dr, é melhor engraxar o home; o carnaval é daqui dois meses e precisamos da sede para montar fantasias, guardar instrumentos...
Não disse eu, mas já sem tanta convicção.
O cara de fuinha me chamou de lado e falou: dr, já entendi seu trabalho; você deve ser janguista; vou falar com o chefe, sugerir que nós recebamos de vocês apenas uma gratificação simbólica: um cruzeiro.
Pensei bem e acabei concordando. Mas aí o cara de fuinha disse que eu tinha que dar o dinheiro na sede da sub-prefeitura, na frente do chefe, para ele não desconfiar que estava sendo lesado pelo cara de fuinha e um outro que era “superintendente”.
Vacilei muito, era crime (hoje em dia seria absolvido, seria crime de bagatela), mas o carnaval se aproximava. Levei o Sergião como testemunha, uma cédula de um cruzeiro (era 1976...), bem, tirei do bolso e acabei passando ela para o fiscal, quase suando de medo de estar caindo em uma armadilha. Foi um crime, mas era para uma boa causa.
O cara de fuinha nunca mais voltou a incomodar. A Colorado do Brás ganhou o desfile, e logo chegaria ao grupo especial. O bar-sede foi fundamental. Mas hoje, décadas passadas, pago a conta, com a corrupção generalizada e os fiscais abusados. Não se fazem fiscais como os de antigamente. O cara de fuinha me fez perder a virgindade. Na carreira de advogado e de dono de vários bares, tive que falar com centenas de fiscais, policiais, guardas e até guarda de quarteirão.
Percival Maricato

Nenhum comentário:

Postar um comentário